Saturday, July 11, 2009,7:12 PM
[ Conto ] Duas Pessoas Numa Noite
Andava calmamente, ouvindo seus próprios passos. A essa hora da madrugada eles ecoavam por toda a extensão da rua, que se encontrava poeticamente desértica. Fazia frio, mas só o bastante para que ele estivesse usando seu casaco preto, em sobreposição a uma camisa branca. Estava elegantemente simples, e sabia.
Mergulhado em seus pensamentos, teve sua inércia interrompida por um choro de mulher. Ouvia claramente, aquele som abafado entre as mãos, intercalando-se com soluços desesperadores. Sua atenção seguiu o choro, identificando que vinha da praça que estava logo à frente. Sem acelerar seu passo ou mesmo perder seu ritmo, continuou em direção à praça com a mesma serenidade que seguia seu caminho antes.
Ela se achava ridícula, estava ainda mais ridícula agora, chorando sozinha numa praça! E se alguém perigoso chegasse? Seu dia estaria completo, isso era certo. Mas, pensava, provavelmente ninguém teria a brilhante idéia de ficar num banco de praça a essa hora, ou mesmo na rua. Nem mesmo os bandidos.
Ela parou de chorar. Ouviu passo de alguém que se aproximava. Sentiu muito medo. Olhando discretamente por entre os dedos, como se talvez se o estuprador não percebesse que ela o tinha visto, se sentisse intimidado a não cometer nenhum ato contra aquela garota tão nova e que estava tão desesperadamente imersa em seu próprio sofrimento. Ela viu um homem, andava em sua direção. Não sentiu medo, ele estava bem vestido, uma calça preta, um casaco e seu cabelo bem cortado em contraposição de sua cor clara e sua camisa por dentro. É elegante e bonito, trinta anos, pensou.
"Boa noite, você tem fogo?" - disse o cavalheiro se apresentando. Ele próprio tinha, claro, era só um pretexto. Lembrou-se que em sua bolsa devia haver no mínimo uns trës isqueiros e pegou um, entregando-o sem dizer nada.
Estava nitidamente com a aparëncia bagunçada, seu cabelo provavelmente não havia preservado o penteado e ela preferia não pensar em como estaria o vestido após ter sido tão levianamente pressionado e molhado com suas lágrimas. Sabia também que ele a tinha ouvido chorar, e isso a deixava constrangida demais para pronunciar qualquer coisa a respeito.
Ele acendeu seu cigarro, parado ao lado do banco em que ela ainda sentava, e soltou a primeira fumaça olhando para o céu e despistando seu olhar da garota constrangida. Ela era bonita, sem dúvida alguma, seu cabelos loiros encaracolados faziam uma harmonia perfeita com sua pele que em tudo se assemelhava a um algodão ainda na natureza, embora seu rosto se apresentava agora corado e um pouco amassado. Mas seu vestido, esse sim era o protagonista da cena, branco com detalhes floridos e curto na medida exata, dava um ar jovial e transformava aquela mulher de vinte e poucos numa garota esperando seu cavalheiro cortejá-la.
"O mais lamentável disso tudo...", ele fez uma pequena pausa para que ela desse atenção, "É que eu soaria nada mais do que um grande canastrão ao dizer que essa cena toca meu lado mais pueril, uma garota, uma mulher, chorando com seu vestido branco numa praça deserta em uma noite solitária. E o pior, o pior, é que eu estaria dizendo a mais pura verdade existente.", e sorriu buscando uma aprovação naquele gesto maroto, tentando conseguir no mínimo que ela se alegrasse diante a ridicularidade da situação que ele havia imposto. E conseguiu.
Ela riu um pouco, sentindo-se estranhamente familiar com aquele sujeito tão oportunamente surgido naquela madrugada. Agora já o olhava nos olhos, não sentia mais o tamanho constrangimento e se sentia instigada por ele.
"E qual sua desculpa para nos colocar numa situação tão clichê, garota de branco?" - disse o jovem homem.
"Eu não tenho desculpa, acabo de sair de uma festa, tive uma briga com um idiota qualquer, que supostamente me levaria para casa e me encontrei sozinha nessa praça.", ela sentia uma confiança que, se fosse parar pra pensar, era carente e imprudente, mas ela não queria pensar. Estava começando a se sentir melhor, e isso que importava.
"Suponho que esse idiota seria seu relapso namorado que não notou o seu vestido e que no final causou esse despenteado e seus olhos gastos?"
"Supôs certo", disse ficando novamente um pouco constrangida e olhando para baixo.
"Posso me sentar, mulher sem nome?"
"Pode, claro. Meu nome é Alice."
"O meu é Alan.", respondeu jogando seu resto de cigarro fora e sentando-se ao lado dela.
"Então Alan, qual sua desculpa para nos colocar nessa situaçao clichê?"
"Eu não tenho desculpa tampouco, não posso me dar ao luxo de dizer que vim de algum lugar, porque a verdade é que apenas saí para andar um pouco. Tenho um grande prazer em andar pela cidade de madrugada, ela é minha, eu a conheço muito bem e ela também já se acostumou com meus passos."
"Ahnn". Sentiu-se com vontade de correr, aquela situação começava a ficar estranha, homem esquisito. Mas parecia amigável afinal de contas, e era bonito, elegante, ela devia dar um voto de confiança ao destino. Quem sabe Deus decidiu melhorar sua noite após tanto desgaste? A gente tem que acreditar que coisas boas podem sair de coisas ruins.
"Percebo que você achou muito estranho. Mas garanto-lhe que sou um sujeito bem comum, não sou nenhum louco ou estuprador. Não mesmo. Mas esse seu namorado, ele que te magoou."
"Não! Eu não pensaria isso de você, mal o conheço Alan, mas acho que se pensasse dessa forma não estaria até agora contigo aqui né? Além de que, é uma situação bem amedrontadora, isso de conversar com um estranho de madrugada, sozinha... realmente, sinto-me um pouco bem contigo. Só isso. Sobre Lucas, ele é uma pessoa boa, um ótimo namorado, mas acho que certas pessoas simplesmente não devem ficar juntas. Não dá."
"Você tem razão. No final, as pessoas são todas más e boas. Elas são apenas pessoas. E acho que a gente superestima o que convencionamos de bons sentimentos, boas atitudes. A gente superestima tudo eu acho, a vida em si, não passa de um conceito.". Ele acendeu outro cigarro, levantando-se, ainda ao lado dela.
"Não sei o que penso desses seus pensamentos, acho muito estranho.. pra ser sincera. Você me soa como alguém que não tem estima pelos outros, sei lá, só parece..."
"Vamos lá, estou apenas divagando, está uma noite linda, duas pessoas se conhecendo. Acho que temos o direito de refletir um pouco sobre as coisas, não é mesmo? Eu acho que só te falta uma noção mais real do que estou te dizendo, uma percepção da efemeridade das coisas. Mas de qualquer forma, não nos gastemos com isso...". Ele se aproximou lentamente dela, com um olhar convidativo e de alguma forma dentro daquela excetricidade, sedutor. Se abaixava em sua direção, esperando um sinal que lhe indicasse que poderia continuar.
Ela sorriu de novo, percebeu que ele se aproximava após aquele discurso e permitiu. Achava-o extremamente encantador no final das contas, e acreditava num beijo que viria de uma forma tão natural que a fazia acreditar que sua noite, apesar de tudo, seria uma excelente noite de espontaneidade.
Ele se aproximou mais, fechou seus olhos, e quando sentiu que ela também aproximava seu rosto do seu pelo calor de seus lábios, se distanciou bruscamente. Ela não notou a tempo, ele abriu os olhos e desferiu contra o olho esquerdo de Alice a chama de seu cigarro. Ela mal teve tempo de gemer. Estava muito confusa.
Ele segurou a boca dela com a outra mão, que estava desocupada, e pressionou com maior força o cigarro contra seu olho. Ela chorava muito, tentava morder desesperadamente sua mão, e se contorcia toda, mas por estar sentada não tinha um bom ponto de apoio para correr da pressão dos braços dele. A dor a confundia. Ele estava em pé, reclinado em direção a ela, com suas pernas esticadas e as dela no meio, mexendo freneticamente. Os gritos eram abafados, mas ainda se poderia ouvir, se houvesse alguém perto.
Após alguns segundos, e a aparente escassez de energia de sua vítima, ele começou a bater violentamente a nuca da garota no banco de concreto. Aquele baque surdo se repetiu diversas vezes, até ele sentir que a resistência de seu crânio começava a ceder, e finalmente o sangue passou a escorrer pelo banco e pingar no assento.
Ela não tinha mais vida.
Ele parou, voltou a ficar ereto. Tomou um pouco de ar, depois daquele exercício. Olhou para aquele corpo branco, lindo e sem vida. O organizou melhor no espaço do banco, juntando suas pernas e colocando seus braços rente ao corpo, como se ela estivesse sentada e cochilando. Conferiu e ficou satisfeito ao concluir que sua roupa não havia se sujado. E foi embora.
Voltou pelo mesmo caminho que havia chegado. Pela mesma rua, ouvindo seus próprios passos, calmamente enquanto sua amiga, a cidade, o fazia companhia.
Aquela garota morreu, sem motivo algum, e ao amanhecer, haveria uma notícia dela em algum lugar e toda a cidade continuaria viva. Não faria diferença.
 
posted by Illan
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